terça-feira, dezembro 21, 2021

Haicai 1

 



Matéria

O osso da ostra
A noite da ostra
Eis um material de poesia



Em Matéria de poesia (2001, pág. 51)

domingo, dezembro 19, 2021

19/12 - Nascimento de Manoel de Barros

Há um cio vegetal na voz do artista.
Ele vai ter que envesgar seu idioma ao ponto de alcançar o murmúrio
das águas nas folhas das árvores.
Não terá mais o condão de refletir sobre as coisas.
Mas terá o condão de sê-las.
Não terá mais ideias: terá chuvas, tardes, ventos, passarinhos…
Nos restos de comida onde as moscas governam ele achará solidão.
Será arrancado de dentro dele pelas palavras a torquês.
Sairá entorpecido de haver-se.
Sairá entorpecido e escuro.
Ver sambixuga entorpecida gorda pregada na barriga do cavalo —
Vai o menino e fura de canivete a sambixuga: Escorre sangue escuro do cavalo.
Palavra de um artista tem que escorrer substantivo escuro dele.
Tem que chegar enferma de suas dores, de seus limites, de suas derrotas.
Ele terá que envesgar seu idioma ao ponto de enxergar no olho de uma
garça os perfumes do sol.



Em “Retrato do artista quando coisa” (1998)

Imagem: Iluminura da filha do poeta, Martha Barros.


segunda-feira, dezembro 13, 2021

Martha Barros

 

Martha Barros, a filha de Manoel de Barros, conta como era a rotina do poeta, desde antes de casar.
Também lê alguns poemas.



segunda-feira, novembro 22, 2021

O menino que ganhou um rio


Minha mãe me deu um rio.
Era dia de meu aniversário e ela não sabia o que me presentear.
Fazia tempo que os mascates não passavam naquele lugar esquecido.
Se o mascate passasse a minha mãe compraria rapadura
Ou bolachinhas para me dar.
Mas como não passara o mascate, minha mãe me deu um rio.
Era o mesmo rio que passava atrás de casa.
Eu estimei o presente mais do que fosse uma rapadura do mascate.
Meu irmão ficou magoado porque ele gostava do rio igual aos outros.
A mãe prometeu que no aniversário do meu irmão
Ela iria dar uma árvore para ele.
Uma que fosse coberta de pássaros.
Eu bem ouvi a promessa que a mãe fizera ao meu irmão
E achei legal.
Os pássaros ficavam durante o dia nas margens do meu rio
E de noite eles iriam dormir na árvore do meu irmão.
Meu irmão me provocava assim: a minha árvore deu flores lindas em setembro.
E o seu rio não dá flores!
Eu respondia que a árvore dele não dava piraputanga.
Era verdade, mas o que nos unia demais eram os banhos nus no rio entre pássaros.
Nesse ponto nossa vida era um afago!


(Memórias inventadas para crianças)

* Imagem: Rio Mondego, Figueira da Foz, Portugal.

Em homenagem a minha amiga, a poeta Graça Pires, fã do Manoel de Barros, que faz aniversário hoje.

sábado, novembro 13, 2021

13 de novembro - aniversário de morte do poeta

 

“Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens”

*Quando Manoel de Barros recebeu a Revista Caros Amigos, em 2008, em sua casa.

quarta-feira, outubro 20, 2021

Dia do Poeta - O poeta dos rios e passarinhos

 


Quem anda no trilho é trem de ferro.
Sou água que corre entre pedras:
- liberdade caça jeito.
Procuro com meus rios os passarinhos
Eu falo desemendado.

terça-feira, outubro 12, 2021

Dia da criança

 


Gosto dos rios. E gosto mais quando eles estão nas margens dos meninos, dos pássaros, das árvores, das pedras, das lesmas, dos ventos, do sol, dos sapos, das latas e de todas as coisas sem tarefas urgentes. Os rios são uma das fontes da minha poesia porque as garças pousam neles com os olhos cheios de sol e de neblina. Porque as rãs paridas nas suas margens gorjeiam como os pássaros. Porque as libélulas, também chamadas de lava-bundas, farreiam na flor de suas águas. E porque o menino, em cujas margens o rio corre, guarda no olho as coisas que viu passar.
Imagem: Meu filho e seu amigo.

terça-feira, outubro 05, 2021

Os deslimites das palavras

 


Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu
destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.

terça-feira, setembro 21, 2021

Gorjeio - Dia da árvore

 


Gorjeio é mais bonito do que canto porque nele se
inclui a sedução.
É quando a pássara está namorada que ela gorjeia.
Ela se enfeita e bota novos meneios na voz.
Seria como perfumar-se a moça para ver o namorado.
É por isso que as árvores ficam loucas se estão gorjeadas.
É por isso que as árvores deliram.
Sob o efeito da sedução da pássara as árvores deliram.
E se orgulham de terem sido escolhidas para o concerto.
As flores dessas árvores depois nascerão mais perfumadas.


* [Ensaios Fotográficos]


** Comemora-se o Dia da Árvore em 21/09, em todo o território nacional; a data foi escolhida por estar próxima ao início da primavera. 


terça-feira, agosto 31, 2021

A doença

 

Foto: Paulo Francis - 2020


Nunca morei longe do meu país.
Entretanto padeço de lonjuras.
Desde criança minha mãe portava essa doença.
Ela que me transmitiu.
Depois meu pai foi trabalhar num lugar que dava essa doença nas pessoas.
Era um lugar sem nome nem vizinhos.
Diziam que ali era a unha o dedão do pé do fim do mundo.
A gente crescia sem ter outra casa ao lado.
No lugar só constavam pássaros, árvores, o rio e os seus peixes.
Havia cavalos sem freios dentro dos matos cheios
de borboletas nas costas.
O resto era só distância.
A distância seria uma coisa vazia que a gente portava no olho
E que meu pai chamava exílio.

quinta-feira, agosto 19, 2021

Poeminhas de Manoel de Barros - Menino do mato

 


I

Eu queria usar palavras de ave para escrever.
Onde a gente morava era um lugar imensamente e sem nomeação.
Ali a gente brincava de brincar com palavras tipo assim:
Hoje eu vi uma formiga ajoelhada na pedra!
A Mãe que ouvira a brincadeira falou:
Já vem você com suas visões!
Porque formigas nem têm joelhos ajoelháveis e nem há pedras de sacristias por aqui.
Isso é traquinagem da sua imaginação
O menino tinha no olhar um silêncio de chão e na sua voz uma candura de Fontes.
O Pai achava que a gente queria desver o mundo para encontrar nas palavras novas coisas de ver assim: eu via a manhã pousada sobre as margens do rio do mesmo modo que uma garça aberta na solidão de uma pedra.
Eram novidades que os meninos criavam com as suas palavras.
Assim Bernardo emendou nova criação:
Eu hoje vi um sapo com olhar de árvore.
Então era preciso desver o mundo para sair daquele lugar imensamente e sem lado.
A gente queria encontrar imagens de aves abençoadas pela inocência.
O que a gente aprendia naquele lugar era só ignorâncias para a gente bem entender a voz das águas e dos caracóis.
A gente gostava das palavras quando elas perturbavam o sentido normal das ideias.
Porque a gente também sabia que só os absurdos enriquecem a poesia.

II

Nosso conhecimento não era de estudar em livros.
Era de pegar de apalpar de ouvir e de outros sentidos.
Seria um saber primordial?
Nossas palavras se ajuntavam uma na outra por amor e não por sintaxe.
A gente queria o arpejo. O canto. O gorjeio das palavras.
Um dia tentamos até de fazer um cruzamento de árvores com passarinhos para obter gorjeios em nossas palavras.
Não obtivemos.
Estamos esperando até hoje.
Mas bem ficamos sabendo que é também das percepções primárias que nascem arpejos e canções e gorjeios.
Porém naquela altura a gente gostava mais das palavras desbocadas.
Tipo assim: Eu queria pegar na bunda do vento.
O pai disse que vento não tem bunda.
Pelo que ficamos frustrados.
Mas o pai apoiava a nossa maneira de desver o mundo que era a nossa maneira de sair do enfado.
A gente não gostava de explicar as imagens porque explicar afasta as falas da imaginação.
A gente gostava dos sentidos desarticulados como a conversa dos passarinhos no chão a comer pedaços de mosca.
Certas visões não significavam nada mas eram passeios verbais. A gente sempre queria dar brazão às borboletas.
A gente gostava bem das vadiações com as palavras do que das prisões gramaticais.
Quando o menino disse que queria passar para as palavras suas peraltagens até os caracóis apoiaram.
A gente se encostava na tarde como se a tarde fosse um poste.
A gente gostava das palavras quando elas perturbavam os sentidos normais da fala.
Esses meninos faziam parte do arrebol como os passarinhos. 

IV

Lugar mais bonito de um passarinho ficar é a palavra.
Nas minhas palavras ainda vivíamos meninos do mato, um tonto e mim.
Eu vivia embaraçado nos meus escombros verbais.
O menino caminhava incluso em passarinhos.
E uma árvore progredia em ser Bernardo.
Ali até santos davam flor nas pedras.
Porque todos estávamos abrigados pelas palavras.
Usávamos todos uma linguagem de primavera.
Eu viajava com as palavras ao modo de um dicionário.
A gente bem quisera escutar o silêncio do orvalho sobre as pedras.
Tu bem quisera também saber o que os passarinhos sabem sobre os ventos.
A gente só gostava de usar
palavras de aves porque eram palavras abençoadas pela inocência.
Bernardo disse que ouvira um vento quase encostado nas vestes da tarde.
Eu sonhava de escrever um livro com a mesma inocência com que as crianças fabricam seus navios de papel.
Eu queria pegar com as mãos no corpo da manhã.
Porque eu achava que a visão fosse um ato poético do ver.
Tu não gostasse do caminho comum das palavras
Antes melhor eu gostasse dos absurdos.
E se eu fosse um caracol, uma árvore, uma pedra?
E seu eu fosse?
Eu não queria ocupar o meu tempo usando palavras bichadas de costumes.
Eu queria mesmo desver o mundo.
Tipo assim: eu vi um urubu dejetar nas vestes da manhã.
Isso não seria de expulsar o tédio
E como eu poderia saber que o sonho do silêncio era ser pedra!

VI

Desde o começo do mundo água e chão se amam e se entram amorosamente e se fecundam.
Nascem peixes para habitar os rios.
E nascem pássaros para habitar as árvores.
As águas ainda ajudam na formação dos caracóis e das suas lesmas.
As águas são a epifania da criação.

[…]

Penso com humildade que fui convidado para o banquete dessas águas.
Porque sou de bugre.
Porque sou de brejo.
Acho agora que estas águas que bem conhecem a inocência de seus pássaros e de suas árvores.
Que elas pertencem também de nossas origens.
Louvo portanto esta fonte de todos os seres e de todas as plantas.
Vez que todos somos devedores destas águas.
Louvo ainda as vozes dos habitantes deste lugar que trazem para nós, na umidez de suas palavras, a boa inocência de nossas origens.

sexta-feira, agosto 06, 2021

A voz do meu pai

 



Abro os olhos.

Não vejo mais meu pai.
Não ouço mais a voz de meu pai.
Estou só. Estou simples.
Não como essa poderosa voz da terra
com que me estás chamando, pai —
porque as cores se misturam
em teu filho ainda
e a nudez e o despojamento
não se fizeram em seu canto;
mas, simples por só acreditar
que com meus passos incertos
eu governo a manhã
feito os bandos de andorinha
nas frondes do ingazeiro.

domingo, julho 04, 2021

8 - O poste

 


Fomos rever o poste.

O mesmo poste de quando a gente brincava de pique e de esconder.

Agora ele estava tão verdinho!

O corpo recoberto de limo e borboletas.

Eu quis filmar o abandono do poste.

O seu estar parado.

O seu não ter voz.

O seu não ter sequer mãos para se pronunciar com as mãos.

Penso que a natureza o adotara em árvore.

Porque eu bem cheguei de ouvir arrulos de passarinhos

que um dia teriam cantado entre as suas folhas.

Tentei transcrever para flauta a ternura dos arrulos.

Mas o mato era mudo.

Agora o poste se inclina para o chão como alguém

que procurasse o chão para repouso.

Tivemos saudades de nós.


(Em Poemas rupestres)


segunda-feira, junho 21, 2021

"Nadifúndios"

 



V

Eles enverdam jia nas auroras.

São viventes de ermo. Sujeitos

Que magnificam moscas — e que oram

Devante uma procissão de formigas…

São vezeiros de brenhas e gravanhas.

São donos de nadifúndios.

(Nadifúndio é lugar em que nadas

Lugar em que osso de ovo

E em que latas com vermes emprenhados na boca.

Porém.

O nada destes nadifúndios não alude ao infinito menor

de ninguém.

Nem ao Néant de Sartre.

E nem mesmo ao que dizem os dicionários: coisa que

não existe.

O nada destes nadifúndios existe e se escreve com letra

minúscula.)

Se trata de um trastal.

Aqui pardais descascam larvas.

Vê-se um relógio com o tempo enferrujado dentro.

E uma concha com olho de osso que chora.

Aqui, o luar desova…

Insetos umedecem couros

E sapos batem palmas compridas…

Aqui, as palavras se esgarçam de lodo.


* Em: O Guardador de águas.

segunda-feira, junho 14, 2021

Tributo a J.G.Rosa

 


Passarinho parou de cantar.
Essa é apenas uma informação.
Passarinho desapareceu de cantar.
Esse é um verso de J.G. Rosa.
Desapareceu de cantar é uma graça verbal.
Poesia é uma graça verbal.


("Tratado das grandezas do ínfimo")

sábado, maio 15, 2021

Uma didática da invenção


XIX
O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa
era a imagem de um vidro mole que fazia uma
volta atrás de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta
que o rio faz por trás de sua casa se chama
enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
que fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.


Imagem: Pedro Anahory

domingo, abril 18, 2021

Aprendimentos

 


O filósofo Kierkegaard me ensinou que cultura

é o caminho que o homem percorre para se conhecer.
Sócrates fez o seu caminho de cultura e ao fim
falou que só sabia que não sabia de nada.
Não tinha as certezas científicas. Mas que aprendera coisas
di-menor com a natureza. Aprendeu que as folhas
das árvores servem para nos ensinar a cair sem
alardes. Disse que fosse ele caracol vegetado
sobre pedras, ele iria gostar. Iria certamente
aprender o idioma que as rãs falam com as águas
e ia conversar com as rãs.
E gostasse mais de ensinar que a exuberância maior está nos insetos
do que nas paisagens. Seu rosto tinha um lado de
ave. Por isso ele podia conhecer todos os pássaros
do mundo pelo coração de seus cantos. Estudara
nos livros demais. Porém aprendia melhor no ver,
no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar.
Chegou por vezes de alcançar o sotaque das origens.
Se admirava de como um grilo sozinho, um só pequeno
grilo, podia desmontar os silêncios de uma noite!
Eu vivi antigamente com Sócrates, Platão, Aristóteles —
esse pessoal.
Eles falavam nas aulas: Quem se aproxima das origens se renova.
Píndaro falava pra mim que usava todos os fósseis linguísticos que
achava para renovar sua poesia. Os mestres pregavam
que o fascínio poético vem das raízes da fala.
Sócrates falava que as expressões mais eróticas
são donzelas. E que a Beleza se explica melhor
por não haver razão nenhuma nela. O que mais eu sei
sobre Sócrates é que ele viveu uma ascese de mosca.

* Em Memórias inventadas

Obs.: por mais entranha que pareça a "disposição" dos versos, é assim mesmo.

domingo, março 21, 2021

Abandono


 Prefiro as máquinas que servem para não funcionar:

quando cheias de areia de formiga e musgo - elas
podem um dia milagrar de flores.

(Os objetos sem função têm muito apego pelo abandono.)

Também as latrinas desprezadas que servem para ter
grilos dentro - elas podem um dia milagrar violetas.

(Eu sou beato em violetas.)

Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam a Deus.
Senhor, eu tenho orgulho do imprestável!

(O abandono me protege.)

sexta-feira, março 12, 2021

Flores...

 


"Flores engordadas nos detritos até falam!"

(Em Livro de pré-coisas, Poesia completa, Editora Leya, página 221)

* Rosa do meu jardim.

terça-feira, fevereiro 02, 2021

Meu quintal é maior do que o mundo - com Cássia Kiss

 

Em “Meu Quintal é Maior do que o Mundo” a atriz Cássia Kis abre a cena revelando as fontes de inspiração do poeta: a criança, o passarinho e o andarilho. Em seguida, ao pisar num tapete no centro do palco e com um livro em mãos, a atriz evoca o universo poético do cerrado brasileiro, tão bem descrito pelo poeta.
(São Paulo, 2019)

terça-feira, janeiro 19, 2021

O lápis

 


É por demais de grande a natureza de Deus.

Eu queria fazer para mim uma naturezinha particular.
Tão pequena que coubesse na ponta do meu lápis.
Fosse ela, quem me dera, só do tamanho do meu quintal.
No quintal ia nascer um pé de tamarino apenas para uso dos passarinhos.
E que as manhãs elaborassem outras aves para compor o azul do céu.
E se não fosse pedir demais eu queria que no fundo corresse um rio.
Na verdade na verdade a coisa mais importante que eu desejava era o rio.
No rio eu e a nossa turma, a gente iria todo 
dia jogar cangapé nas águas correntes.
Essa, eu penso, é que seria a minha naturezinha particular:
Até onde o meu pequeno lápis poderia alcançar.


Poemas rupestres. Pág. 439 e 440 da minha edição. 
Poesia completa - São Paulo: Leya, 2010.