quinta-feira, dezembro 24, 2020

Poema de Natal


Eu já postei esse poema, mas este ano ele é muito necessário, pelo isolamento dos idosos e por todos os familiares perdidos para a covid. Que o próximo ano seja mais esperançoso.

Meu abraço e a luz de Manoel de Barros.



"Meu avô hoje ganhou de presente um olhar de pássaro
Acho que ele vai usar esse olhar para fazer as suas artes
O mundo para ele anda muito cansado
Ele quer mudar o jeito das coisas do mundo
Por exemplo ele vai dar primavera aos vermes
O homem não vai mais fabricar armas de fogo
Só vai ter mesmo rio, árvores, o sol, bichos, pedras
Ele vai desenhar a sua voz nas pedras
Os grilos vão se abrir no meio da noite com enormes lírios
Todo mundo vai gostar mesmo é de obedecer as falas das crianças
Do que as ordens gramaticais
Os sapos vão andar de bicicleta
Depois vamos assistir ao nascimento de Jesus
Será o Natal

E todos vamos adotar as boas falas do filho de Deus
Amar o próximo como a nós mesmos
Então o mundo será renovado!”

quinta-feira, dezembro 17, 2020

Ruína - por Odilon Esteves

 


Já havia posto esse ano a Maria Bethânia recitando esse poema. O poema também está na postagem. Mas o vídeo do Odilon Esteves está legendado. Achei interessante outra leitura. Aliás, existem várias...

terça-feira, dezembro 08, 2020

A natureza era inocente

 


Aquele homem falava com as árvores e com as águas

ao jeito que namorasse.
Todos os dias
ele arrumava as tardes para os lírios dormirem.
Usava um velho regador para molhar todas as
manhãs os rios e as árvores da beira.
Dizia que era abençoado pelas rãs e pelos
pássaros.
A gente acreditava por alto.
Assistira certa vez um caracol vegetar-se
na pedra.

mas não levou susto.
Porque estudara antes sobre os fósseis linguísticos
e nesses estudos encontrou muitas vezes caracóis
vegetados em pedras.
Era muito encontrável isso naquele tempo.
Até pedra criava rabo!
A natureza era inocente.

domingo, novembro 22, 2020

Excitação da palavra


Bosco Martins a Manoel de Barros - 
Quanto tempo da “inspiração súbita” demora para virar um poema?

Manoel de Barros – Inspiração eu só conheço de nome. O que eu tenho é excitação pela palavra. Se uma palavra me excita eu busco nos dicionários a existência ancestral dela. Nessa busca descubro motivos para o poema.

sexta-feira, novembro 13, 2020

sexta-feira, outubro 30, 2020

O fotógrafo / vídeo

 


Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim eu enxerguei a Nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakovski – seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa mais justa para cobrir a sua noiva.
A foto saiu legal.



(Em Ensaios fotográficos) 


* Observação: de tanto copiar na internet poemas "errados", resolvi copiar dos meus livros. Esse foi copiado da página 379, Poesia Completa da Editora Leya, 2010. 

Assista abaixo o poema "O FOTÓGRAFO", de Manoel de Barros, declamado por Antônio Abujamra. Quem quiser assistir no YouTube, é só clicar em YouTube abaixo do vídeo que abrirá o link em uma nova janela:



quarta-feira, outubro 14, 2020

Dia da criança - Agora eu invento brinquedos com palavras


Minha infância passei em uma fazenda no Pantanal. Nesse lugar o tempo era parado. Ou passava devagar que lesma. Às vezes a lesma chegava primeiro que o fim do dia. Eu não era solitário. Tinha três irmãos. A gente fabricava os nossos brinquedos. No lugar só tinha o nosso rancho e animais de sela. O que sufocava não era a falta de espaço. A gente só via as distâncias. A gente inventava brinquedos o tempo todo. Agora eu invento brinquedos com palavras. Um vício que eu trouxe de lá. – Manoel de Barros

segunda-feira, setembro 28, 2020

O lagarto espichado na areia

 


Por forma que a nossa tarefa principal
era a de aumentar
o que não acontecia.
(Nós era um rebanho de guris.)
A gente era bem-dotado para aquele serviço
de aumentar o que não acontecia.
A gente operava a domicílio e pra fora.
E aquele colega que tinha ganho um olhar
de pássaro
Era o campeão de aumentar os desacontecimentos.
Uma tarde ele falou pra nós que enxergara um
lagarto espichado na areia
a beber um copo de sol.
Apareceu um homem que era adepto da razão
e disse:
Lagarto não bebe sol no copo!
Isso é uma estultícia.
Ele falou de sério.
Ficamos instruídos.


(em Poemas Rupestres)

terça-feira, setembro 22, 2020

Hoje começa a primavera!


 

"Na verdade na verdade

os passarinhos que botavam primavera nas palavras".

(trecho de 'Canção do ver', em Poemas Rupestres)

segunda-feira, setembro 21, 2020

sábado, setembro 12, 2020

Um banho de infância

"Manual de Barro" faz apresentação do livro "Concerto a céu aberto para solos de aves" para Manoel de Barros.

E o poeta aprova: "banho de infância em mim" é o que diz ao final da apresentação.


segunda-feira, agosto 31, 2020

Maria Bethânia lê Manoel de Barros

 


A cantora Maria Bethânia lê o poema Ruína, do poeta Manoel de Barros.  

Postagem no YouTube de Junior Zenith.

Um monge descabelado me disse no caminho: “Eu queria construir uma ruína. Embora eu saiba que ruína é uma desconstrução. Minha ideia era de fazer alguma coisa ao jeito de tapera. Alguma coisa que servisse para abrigar o abandono, como as taperas abrigam. Porque o abandono pode não ser apenas um homem debaixo da ponte, mas pode ser também de um gato no beco ou de uma criança presa num cubículo. O abandono pode ser também de uma expressão que tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma palavra que esteja sem ninguém dentro. (O olho do monge estava perto de ser um canto.) Continuou: digamos que a palavra AMOR. A palavra amor está quase vazia. Não tem gente dentro dela. Queria construir uma ruína para a palavra amor. Talvez ela renascesse das ruínas, como o lírio pode nascer de um monturo”. E o monge se calou descabelado.

Manoel de Barros

sexta-feira, agosto 14, 2020

O ser letral

Eu sou dois seres.

O primeiro é fruto do amor de João e Alice.
O segundo é letral:
E fruto de uma natureza que pensa por imagens,
como diria Paul Valéry.
O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu
e vaidades.
O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades
frases.
E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.

terça-feira, agosto 04, 2020

Sobre nada e poesia

Sempre que desejo contar alguma coisa, 
não faço nada;
mas quando não desejo contar nada, 
faço poesia.

sexta-feira, julho 24, 2020

Ninguém é pai de um poema sem morrer

Pra mim é uma coisa que serve de nada o poema
enquanto vida houver.
Ninguém é pai de um poema sem morrer.

domingo, julho 12, 2020

Poesia não é demonstrativa

"Parece que o poeta serve para desacomodar as palavras. 
Não deixar que as palavras se viciem no mesmo contexto. 
Usar as palavras para ampliar o mundo há de ser outro milagre da poesia. 
Celebrar moscas é um exemplo de como podemos ampliar o mundo. 
Uma das regras importantes da poesia é não ser demonstrativa. 
Poesia não presta para demonstrar nada. 
Ela só presta para dar néctar." 



Manoel de Barros em entrevista a Douglas Diegues.

terça-feira, junho 30, 2020

Desvio

 “No caminho, as crianças me enriqueceram mais do que Sócrates. Minha imaginação não tem estrada. E eu não gosto mesmo de estrada. Gosto de desvio e de desver.”

(Em carta a José Castello)

quarta-feira, junho 17, 2020

O recolhimento da concha

Não sou biografável. Ou talvez seja. Em três linhas.
1. Nasci na beira do rio Corumbá.
2. Passei a vida fazendo coisas inúteis.
3. Aguardo um recolhimento de conchas. (E que seja sem dor, em algum banco de praça, espantando da casa as moscas mais brilhantes.)

quinta-feira, junho 04, 2020

Solitário



Os muros enflorados caminhavam ao lado de um
homem solitário
Que olhava fixo para certa música estranha
Que um menino extraía do coração de um sapo.

Naquela manhã dominical eu tinha vontade de sofrer
Mas sob as árvores as crianças eram tão comunicativas

Que me faziam esquecer de tudo
Olhando os barcos sobre as ondas…
No entanto o homem passava ladeado de muros! 
E eu não pude descobrir em seu olhar de morto
O mais pequeno sinal de que estivesse esperando alguma dádiva!

Seu corpo fazia uma curva diante das flores.


 

*No livro "Face imóvel" 

sábado, maio 30, 2020

Explicando o gosto mais literário que revolucionário

Fica claro que o engajamento político do poeta, nem no auge de sua juventude, se sobrepõe à literatura. 
Registra Müller (2010):

Nos fins dos anos 1940, no Rio, pensei de salvar o mundo da miséria e da opressão. Todos os rapazes da minha faculdade estavam dispostos a dar a vida para salvar o mundo. Eu tinha lido em Fernando Pessoa: “Amanhã é dos loucos de hoje”. Era preciso ser louco. Era preciso ser amanhã. Entrei para a juventude Comunista. Comecei a ter chefes e chefetes. Recebia ordem que ninguém sabia de onde vinham. Ordem de pichar estátuas, de soltar panfletos. Tarefas. Tarefas. Me mandaram ler Marx, Engels, Lenine. Não passava das 10 primeiras páginas. Descobri que o meu forte era a palavra. Me ajeitei com Maiakóvski. Meu gosto era mais literário que revolucionário. Acho que iria fugir se me mandassem brigar. Eu seria se tanto uma barata: se me pisassem a carcaça eu sairia pelos cantos arrastando substâncias [...] 
(MÜLLER, 2010, p. 101).

domingo, maio 10, 2020

No aeroporto...

No aeroporto o menino perguntou:
— E se o avião tropicar num passarinho?
O pai ficou torto e não respondeu.
O menino perguntou de novo:

— E se o avião tropicar num passarinho triste?
A mãe teve ternuras e pensou:
Será que os absurdos não são as maiores virtudes da poesia? Será que os despropósitos não são mais carregados de poesia do que o bom senso?
Ao sair do sufoco o pai refletiu:
Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças.
E ficou sendo.

Manoel de Barros, in Exercícios de Ser Criança.


* Hoje é dia das mães.

domingo, abril 05, 2020

Mansidão (Obs.: A população mundial passando pelo isolamento social)

Janela do meu quarto em abril


As casas dormiam na hora surda do meio-dia. 
O corpo do homem penetrou sob árvores 
Na longa quietude estendida da rua. 
Tudo permaneceu sem um grito, 
Um pedido de socorro sequer. 
Ninguém soube se o coração vibrou. 
Que sonho o acalenta ninguém adivinhou. 
Ninguém sabe nada. 
Não traz um lamento, 
Nem marca dos pés no chão vai ficar. 
Tão triste é a vida sem marca dos pés! 
Tudo permaneceu sem um grito, 
Um pedido de socorro sequer. 
Ele passou sem calúnias 
E é possível que sem corpos que o chamassem. 
Ninguém soube se o coração vibrou 
Porque tudo permaneceu sem fundo suspiro 
No estranho momento das coisas paradas.

- Manoel de Barros, no livro "Face imóvel" (1942).
 

domingo, março 08, 2020

Quem anda no trilho...

“Quem anda no trilho é trem de ferro, sou água que corre entre pedras: liberdade caça jeito.”

– Manoel de Barros, em “Matéria de Poesia”

sábado, fevereiro 08, 2020

Invencionática


Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.


Manoel de Barros

terça-feira, janeiro 21, 2020

Desejar ser



"O maior apetite do homem é desejar ser. Se os olhos veem com amor o que não é, tem ser"


 (Padre Antônio Vieira)

1.

Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.

2.

Prefiro as linhas tortas, como Deus. Em menino eu sonhava de ter uma perna mais curta (Só para poder andar torto). Eu via o velho farmacêutico de tarde, a subir a ladeira do beco, torto e deserto... toc ploc toc ploc. Ele era um destaque.
Se eu tivesse uma perna mais curta, todo mundo haveria de olhar para mim: lá vai o menino torto subindo a ladeira do beco toc ploc toc ploc.
Eu seria um destaque. A própria sagração do Eu. (...)

* Imagem: Walking Man II, estátua de bronze de Alberto Giacometti, 1960.

 

terça-feira, janeiro 07, 2020

Árvore

Foto tirada por mim no jardim do Museu da República - RJ
O mundo não foi
feito em alfabeto.
Senão que primeiro
em água e luz.
Depois árvore.

Manoel de Barros