terça-feira, dezembro 03, 2019

"Meus poemas sofrem de mim"

(...)


Estado - Poemas são assim tão perigosos? Os seus costumam ser adotados nas provas de vestibular. Você não gosta. Por quê?
Manoel - Faço uma poesia difícil. Depois, cair no mundo das imagens não é para qualquer um. Ainda mais para adolescentes. Adolescentes querem as coisas retas, senão não aceitam. E minha poesia é torta.

Estado - Eles exigem, no mínimo, professores muito preparados.
Manoel - Mas nem os professores me digerem. Há pouco tempo, chegou aqui em casa uma das coordenadoras do vestibular em Mato Grosso. Ela me disse: "Eu não entendo nada de seus livros. Se me permitir dizer a verdade, eu vou dizer: seus livros são uma m...!"

Estado - E como você reagiu?
Manoel - Eu lhe disse: "Olhe, minha querida, se meus poemas são difíceis, a culpa não é minha. Juro que não tenho culpa. Meus poemas sofrem de mim."

Estado - E então?
Manoel - Ela estava desesperada. E me disse: "Pois é, mas eu não entendo nada. Como é que vou preparar meus alunos para as provas?" Eu respondi: "Olhe, eu também não sei o que lhe dizer. Meus livros não são para vestibular." Poesia exige sensibilidade. Se você não tem sensibilidade, preparo algum adianta.


(...)

Entrevista a José Castello para o Estado.

sexta-feira, novembro 22, 2019

Retrato do artista quando coisa (Para Graça Pires)

Foto tirada por mim no Museu da República. Árvore onde
meu filho brincava que foi cortada. Tem um passarinho
no primeiro tronco à esquerda.
Remexo com um pedacinho de arame nas minhas memórias fósseis.
Tem por lá um menino a brincar no terreiro: entre conchas, osso de arara, pedaços de pote, sabugos, asas de caçarolas etc. 
E tem um carrinho de bruços no meio do terreiro. 
O menino cangava dois sapos e os botava a puxar o carrinho. 
Faz de conta que ele carregava areia e pedras no seu caminhão. 
O menino também puxava, nos becos de sua aldeia, por um barbante sujo umas latas tristes. 
Era sempre um barbante sujo. 
Eram sempre umas latas tristes. 
O menino é hoje um homem douto que trata com física quântica. 
Mas tem nostalgia das latas. 
Tem saudades de puxar por um barbante sujo umas latas tristes.
Aos parentes que ficaram na aldeia esse homem douto encomendou uma árvore torta – 
Para caber nos seus passarinhos. 

De tarde os passarinhos fazem árvore nele. 



Em:  Em Retrato Do Artista Quando Coisa


* Ofereço essa postagem a minha amiga Graça Pires, que faz aniversário hoje.

segunda-feira, outubro 07, 2019

Mês da Criança


Eu com 5 e 7 anos
"Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela..."

[Manoel de Barros]

sábado, setembro 21, 2019

Mundo pequeno

Mundo Pequeno

in: "O Livro das Ignorãças"
Foto tirada por mim em frente à casa da minha avó.

I
O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.


* Hoje, 21 de setembro, é dia da árvore! Por isso escolhi esse poema.

segunda-feira, agosto 26, 2019

Beethoven e o erro perfeito

"Beethoven é um erro perfeito." Logo, o erro é a perfeição. O artista é um doente, não é um homem normal. É sempre um psicótico, tem um desvio de sensibilidade, algo assim. Minha principal qualidade literária é minha visão torta do mundo - logo, minha principal qualidade literária é minha doença. Escrever que "Beethoven é um erro perfeito" é uma ideia torta, não é? 

Escrever que "o silêncio do mar é azul" também é uma ideia torta, porque silêncio não tem cor. E, no entanto, eu escrevi isso e as pessoas consideram. Todo artista tem um desvio linguístico e é ele que forma seu estilo.


(Conversa com José Castello)

sábado, agosto 10, 2019

O canto dos pássaros e a despalavra


Antes das palavras vem o canto puro, sem sentido, que é aquilo que está no bico
dos pássaros. 
O canto é ágrafo, não admite escrita. 
Só depois dele é que as
palavras aparecem. 
Existe uma continuidade entre o canto dos pássaros e as
palavras humanas. 
O canto dos pássaros é uma "despalavra".

(Em entrevista a José Castello)

sábado, junho 15, 2019

Os bens do poeta

"Os bens do poeta: um fazedor de inutensílios, um 
travador de amanhecer, uma teologia do traste, uma 
folha de assobiar, um alicate cremoso, uma escória 
de brilhantes, um parafuso de veludo e um lado 
primaveril"


- Manoel de Barros, excerto "XII - Sábia com trevas", no livro "Arranjos para assobio" (1980)

sábado, junho 01, 2019

Pregos

Um homem catava pregos no chão,
Sempre os encontrava deitados de comprido,
ou de lado,
ou de joelhos no chão.
Nunca de ponta.
Assim eles não furam mais – o homem pensava.
Eles não exercem mais a função de pregar.
São patrimônio inúteis da humanidade.
Ganharam o privilégio do abandono.
O homem passava o dia inteiro nessa função de catar
pregos enferrujados.
Acho que essa tarefa lhe dava algum estado.
Estado de pessoas que se enfeitam a trapos.
Catar coisas inúteis garante a soberania do Ser.
Garante a soberania de Ser mais do que Ter.

sexta-feira, março 15, 2019

Manoel de Barros e os entulhos necessários ao poema

Por Fábio Pessanha, na Revista Vício Velho, em 13/03/2019

Trechos:


“escombros” é uma imagem forte na poética de manoel de barros. talvez seja toda uma poética dotada de restos e do que não tem serventia, do que na prática se pratica pela inutilidade – o inutensílio que é mais que objeto, que é também um lugar.

(...)

o poema que traz a gente a essa prosa é um exercício de recomeços. diria até que seria uns pertences desconexos que se juntam ao que desde sempre fora um núcleo repartido, mas ao mesmo tempo vigente na locução de seus conflitos.

(...)

XI.
coisinhas: osso de borboleta pedras
com que as lavadeiras usam o rio
pessoa adaptada à fome e o mar
encostado em seus andrajos como um tordo!
o hino da borra escova
sem motor ACEITA-SE ENTULHO PARA O POEMA
ferrugem de sol nas crianças raízes
de escória na boca do poeta beira de rio
que é uma coisa muito passarinhal! ruas
entortadas de vaga-lumes
traste de treze abas e seus favos empedrados
de madeira sujeito com ar de escolhos inseto
globoso de agosto árvore brotada
sobre uma boca em ruínas
retrato de sambixuga pomba estabelecida
no galho de uma estrela! riacho com osso de fora
coberto de aves pinicando
suas tripas e embostando de orvalho
suas pedras indivíduo que pratica nuvens ACEITA-SE
ENTULHO PARA O POEMA moço que tinha
seu lado principal caindo água e o outro lado
mais pequeno tocando larvas!
rã de luaçal
(...)
entulha-se tudo que pode, inclusive o que a princípio não poderia. mas aqui no poema, não há censura que o impeça de ruir contiguidades esperadas pelo comum das vozes normalmente bem aceitas. embora estejamos aqui na parte XI, o poema se compõe de XV partes, e nelas é possível se perceber a potência do inútil ou ainda da palavra como repositório de existências...
(...)
Leia o texto integral aqui na Revista Vício Velho.

sábado, fevereiro 16, 2019

Rascunhos de Manoel de Barros são expostos em SP de fevereiro até abril de 2019

Manoel de Barros em NYC, 1947

Materiais foram reunidos e organizados pela filha e artista plástica Martha de Barros

A 43ª Ocupação Itaú Cultural em homenagem ao poeta, em São Paulo, foi aberta no dia 13/02/19, e reúne rascunhos, cartas, fotos e outros materiais inéditos do autor cuiabano que escolheu Campo Grande como morada.

Desde a morte do poeta, em 2014, a filha do poeta, a artista plástica Martha de Barros, diz estar organizando materiais inéditos deixados por ele no escritório da casa da família, onde ainda hoje mora a esposa, Dona Estela.

Martha passou um ano e meio reunindo e organizando o arquivo do pai, que continha manuscritos em cadernos de vários formatos, cartas, fotos, além do material literário.
Colecionar caderninhos repletos de observações era uma das manias de Manoel. Por isso, uma das atividades da mostra será oficina de encadernação. 

Nos dias 23 e 24 de fevereiro, último fim de semana do mês, os visitantes vão criar seus próprios caderninhos de rascunho.

Alguns dos itens mais especiais que agora serão vistos na exposição são as cartas trocadas entre o autor e personalidades como o desenhista Millôr Fernandes, os escritores Mário de Andrade e Carlos Drummond e o chargista Henfil.

O Itaú Cultural fica na Avenida Paulista, 149, em São Paulo (SP). A visitação é gratuita e ficará aberta até 7 de abril, de terça a sexta, das 9h às 20h. Aos sábado, domingos e feriados, o funcionamento é de 11h as 20h.