terça-feira, agosto 31, 2021

A doença

 

Foto: Paulo Francis - 2020


Nunca morei longe do meu país.
Entretanto padeço de lonjuras.
Desde criança minha mãe portava essa doença.
Ela que me transmitiu.
Depois meu pai foi trabalhar num lugar que dava essa doença nas pessoas.
Era um lugar sem nome nem vizinhos.
Diziam que ali era a unha o dedão do pé do fim do mundo.
A gente crescia sem ter outra casa ao lado.
No lugar só constavam pássaros, árvores, o rio e os seus peixes.
Havia cavalos sem freios dentro dos matos cheios
de borboletas nas costas.
O resto era só distância.
A distância seria uma coisa vazia que a gente portava no olho
E que meu pai chamava exílio.

quinta-feira, agosto 19, 2021

Poeminhas de Manoel de Barros - Menino do mato

 


I

Eu queria usar palavras de ave para escrever.
Onde a gente morava era um lugar imensamente e sem nomeação.
Ali a gente brincava de brincar com palavras tipo assim:
Hoje eu vi uma formiga ajoelhada na pedra!
A Mãe que ouvira a brincadeira falou:
Já vem você com suas visões!
Porque formigas nem têm joelhos ajoelháveis e nem há pedras de sacristias por aqui.
Isso é traquinagem da sua imaginação
O menino tinha no olhar um silêncio de chão e na sua voz uma candura de Fontes.
O Pai achava que a gente queria desver o mundo para encontrar nas palavras novas coisas de ver assim: eu via a manhã pousada sobre as margens do rio do mesmo modo que uma garça aberta na solidão de uma pedra.
Eram novidades que os meninos criavam com as suas palavras.
Assim Bernardo emendou nova criação:
Eu hoje vi um sapo com olhar de árvore.
Então era preciso desver o mundo para sair daquele lugar imensamente e sem lado.
A gente queria encontrar imagens de aves abençoadas pela inocência.
O que a gente aprendia naquele lugar era só ignorâncias para a gente bem entender a voz das águas e dos caracóis.
A gente gostava das palavras quando elas perturbavam o sentido normal das ideias.
Porque a gente também sabia que só os absurdos enriquecem a poesia.

II

Nosso conhecimento não era de estudar em livros.
Era de pegar de apalpar de ouvir e de outros sentidos.
Seria um saber primordial?
Nossas palavras se ajuntavam uma na outra por amor e não por sintaxe.
A gente queria o arpejo. O canto. O gorjeio das palavras.
Um dia tentamos até de fazer um cruzamento de árvores com passarinhos para obter gorjeios em nossas palavras.
Não obtivemos.
Estamos esperando até hoje.
Mas bem ficamos sabendo que é também das percepções primárias que nascem arpejos e canções e gorjeios.
Porém naquela altura a gente gostava mais das palavras desbocadas.
Tipo assim: Eu queria pegar na bunda do vento.
O pai disse que vento não tem bunda.
Pelo que ficamos frustrados.
Mas o pai apoiava a nossa maneira de desver o mundo que era a nossa maneira de sair do enfado.
A gente não gostava de explicar as imagens porque explicar afasta as falas da imaginação.
A gente gostava dos sentidos desarticulados como a conversa dos passarinhos no chão a comer pedaços de mosca.
Certas visões não significavam nada mas eram passeios verbais. A gente sempre queria dar brazão às borboletas.
A gente gostava bem das vadiações com as palavras do que das prisões gramaticais.
Quando o menino disse que queria passar para as palavras suas peraltagens até os caracóis apoiaram.
A gente se encostava na tarde como se a tarde fosse um poste.
A gente gostava das palavras quando elas perturbavam os sentidos normais da fala.
Esses meninos faziam parte do arrebol como os passarinhos. 

IV

Lugar mais bonito de um passarinho ficar é a palavra.
Nas minhas palavras ainda vivíamos meninos do mato, um tonto e mim.
Eu vivia embaraçado nos meus escombros verbais.
O menino caminhava incluso em passarinhos.
E uma árvore progredia em ser Bernardo.
Ali até santos davam flor nas pedras.
Porque todos estávamos abrigados pelas palavras.
Usávamos todos uma linguagem de primavera.
Eu viajava com as palavras ao modo de um dicionário.
A gente bem quisera escutar o silêncio do orvalho sobre as pedras.
Tu bem quisera também saber o que os passarinhos sabem sobre os ventos.
A gente só gostava de usar
palavras de aves porque eram palavras abençoadas pela inocência.
Bernardo disse que ouvira um vento quase encostado nas vestes da tarde.
Eu sonhava de escrever um livro com a mesma inocência com que as crianças fabricam seus navios de papel.
Eu queria pegar com as mãos no corpo da manhã.
Porque eu achava que a visão fosse um ato poético do ver.
Tu não gostasse do caminho comum das palavras
Antes melhor eu gostasse dos absurdos.
E se eu fosse um caracol, uma árvore, uma pedra?
E seu eu fosse?
Eu não queria ocupar o meu tempo usando palavras bichadas de costumes.
Eu queria mesmo desver o mundo.
Tipo assim: eu vi um urubu dejetar nas vestes da manhã.
Isso não seria de expulsar o tédio
E como eu poderia saber que o sonho do silêncio era ser pedra!

VI

Desde o começo do mundo água e chão se amam e se entram amorosamente e se fecundam.
Nascem peixes para habitar os rios.
E nascem pássaros para habitar as árvores.
As águas ainda ajudam na formação dos caracóis e das suas lesmas.
As águas são a epifania da criação.

[…]

Penso com humildade que fui convidado para o banquete dessas águas.
Porque sou de bugre.
Porque sou de brejo.
Acho agora que estas águas que bem conhecem a inocência de seus pássaros e de suas árvores.
Que elas pertencem também de nossas origens.
Louvo portanto esta fonte de todos os seres e de todas as plantas.
Vez que todos somos devedores destas águas.
Louvo ainda as vozes dos habitantes deste lugar que trazem para nós, na umidez de suas palavras, a boa inocência de nossas origens.

sexta-feira, agosto 06, 2021

A voz do meu pai

 



Abro os olhos.

Não vejo mais meu pai.
Não ouço mais a voz de meu pai.
Estou só. Estou simples.
Não como essa poderosa voz da terra
com que me estás chamando, pai —
porque as cores se misturam
em teu filho ainda
e a nudez e o despojamento
não se fizeram em seu canto;
mas, simples por só acreditar
que com meus passos incertos
eu governo a manhã
feito os bandos de andorinha
nas frondes do ingazeiro.