segunda-feira, novembro 06, 2006

Sabiá com trevas - VI


Há quem aceite a palavra a ponto de osso,


de oco;
ao ponto de ninguém e de nuvem.

Sou mais a palavra com febre, decaída, fodida,

na sarjeta.

Sou mais a palavra ao ponto de entulho.

Amo arrastar algumas no caco de vidro,

envergá-las pro chão, corrompê-las, -

até que padeçam de mim e me sujem de branco.

Sonho exercer com elas o ofício de criado:

usá-las como quem usa brincos.

[Arranjos para assobio - 1982]

MATÉRIA DE POESIA



Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para poesia

O homem que possui um pente
e uma árvore
serve para poesia

Terreno de 10x20, sujo de mato - os que
nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem para poesia

Um chevrolé gosmento
Coleção de besouros abstêmios
O bule de Braque sem boca
são bons para poesia

As coisas que não levam a nada
têm grande importância
Cada coisa ordinária é um elemento de estima

Cada coisa sem préstimo
tem seu lugar
na poesia ou na geral

O que se encontra em ninho de joão-ferreira:
caco de vidro, garampos,
retratos de formatura,
servem demais para poesia

As coisas que não pretendem, como
por exemplo: pedras que cheiram
água, homens
que atravessam períodos de árvore,
se prestam para poesia

Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
serve para poesia

As coisas que os líquenes comem
- sapatos, adjetivos -
têm muita importância para os pulmões
da poesia

Tudo aquilo que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para poesia

Os loucos de água e estandarte
servem demais
O traste é ótimo
O pobre-diabo é colosso

Tudo que explique
o alicate cremoso
e o lodo das estrelas
serve demais da conta

Pessoas desimportantes
dão pra poesia
qualquer pessoa ou escada

Tudo que explique
a lagartixa de esteira
e a laminação de sabiás
é muito importante para a poesia

O que é bom para o lixo é bom para a poesia

Importante sobremaneira é a palavra repositório;
a palavra repositório eu conheço bem:
tem muitas repercussões
como um algibe entupido de silêncio
sabe a destroços

As coisas jogadas fora
têm grande importância
- como um homem jogado fora

Aliás é também objeto de poesia
saber qual o período médio
que um homem jogado fora
pode permanecer na terra sem
nascerem em sua boca as raízes da escória

As coisas sem importância são bens de poesia

Pois é assim que um chevrolé gosmento chega
ao poema, e as andorinhas de junho.

[1974]

domingo, março 05, 2006

Poesia, s.f



Foto: Rui Bonito


Raiz de água larga no rosto da noite

Produto de uma pessoa inclinada a antro

Remanso que um riacho faz sob o caule da

manhã

Espécie de réstia espantada que sai pelas

frinchas de um homem

Designa também a armação de objetos lúdicos

com emprego de palavras imagens cores sons

etc. geralmente feitos por crianças pessoas

esquisitas loucos e bêbados.

terça-feira, fevereiro 28, 2006



Sou um sujeito cheio de recantos.
Os desvãos me constam.
Tem hora leio avencas.
Tem hora, Proust.
Ouço aves e beethovens.

Gosto de Bola-Sete e Charles Chaplin.

O dia vai morrer aberto em mim.




Foto: Pedro Gomes



sexta-feira, fevereiro 17, 2006

Seis ou Treze Coisas que Aprendi Sozinho


9

Em passar sua vagínula sobre as pobres coisas do chão, a
lesma deixa risquinhos líquidos...
A lesma influi muito em meu desejo de gosmar sobre as
palavras
Neste coito com letras!
Na áspera secura de uma pedra a lesma esfrega-se
Na avidez de deserto que é a vida de uma pedra a lesma
escorre. . .
Ela fode a pedra.
Ela precisa desse deserto para viver.
de "O Guardador de Águas"

Seis ou Treze Coisas que Aprendi Sozinho

Foto: Jennifer Fabela


3

Tem 4 teorias de árvore que eu conheço.
Primeira: que arbusto de monturo agüenta mais formiga.
Segunda: que uma planta de borra produz frutos ardentes.
Terceira: nas plantas que vingam por rachaduras lavra um poder mais lúbrico de antros.
Quarta: que há nas árvores avulsas uma assimilação maior de horizontes.

de "O Guardador de Águas"

domingo, fevereiro 12, 2006



Aprendo com abelhas do que com aeroplanos.

É um olhar para baixo que eu nasci tendo.

é um olhar para o ser menor, para o

insignificante que eu me criei tendo.

O ser que na sociedade é chutado como uma

barata - cresce de importância para o meu olho.

Ainda não entendi por que herdei esse olhar

para baixo.

Sempre imagino que venha de ancestralidades

machucadas.

Fui criado no mato e aprendi a gostar das

coisinhas do chão -

Antes que das coisas celestiais.

Pessoas pertencidas de abandono me comovem:

tanto quanto as soberbas coisas ínfimas.

sábado, fevereiro 11, 2006

No Aspro

Queria a palavra sem alamares, sem
chatilenas, sem suspensórios, sem
talabartes, sem paramentos, sem diademas,
sem ademanes, sem colarinho.
Eu queria a palavra limpa de solene.
Limpa de soberba, limpa de melenas.
Eu queria ficar mais porcaria nas palavras.
Eu não queria colher nenhum pendão com elas.
Queria ser apenas relativo de águas.
Queria ser admirado pelos pássaros.
Eu queria sempre a palavra no áspero dela.

Uma Didática da Invenção I

in: "O Livro das Ignorãnças" ed. Civilização Brasileira.


I
Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com
faca
b) 0 modo como as violetas preparam o dia
para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas
vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência
num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega
mais ternura que um rio que flui entre 2
lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
Etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.

IV
No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava
escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para
Dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras

IX
Para entrar em estado de árvore é preciso
partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
o mato sair na voz.

Hoje eu desenho o cheiro das árvores.

IX
O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa
era a imagem de um vidro mole que fazia uma
volta atrás de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta
que o rio faz por trás de sua casa se chama
enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
que fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.

Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada

de "O Guardador de Águas"

 I


Não tenho bens de acontecimentos.

O que não sei fazer desconto nas palavras.

Entesouro frases. Por exemplo:

- Imagens são palavras que nos faltaram.

- Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.

- Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.

Ai frases de pensar!

Pensar é uma pedreira. Estou sendo.

Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo)

Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.

Outras de palavras.

Poetas e tontos se compõem com palavras.


II

Todos os caminhos - nenhum caminho

Muitos caminhos - nenhum caminho

Nenhum caminho - a maldição dos poetas.


III

Chove torto no vão das árvores.

Chove nos pássaros e nas pedras.

O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.

Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados.

Crianças fugindo das águas

Se esconderam na casa.


Baratas passeiam nas formas de bolo...


A casa tem um dono em letras.


Agora ele está pensando -


no silêncio líquido

com que as águas escurecem as pedras...


Um tordo avisou que é março.


IV

Alfama é uma palavra escura e de olhos baixos.

Ela pode ser o germe de uma apagada existência.

Só trolhas e andarilhos poderão achá-la.

Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu, ao

fóssil, ao ouro que trazem da boca do chão.

Andei nas pedras negras de Alfama.

Errante e preso por uma fonte recôndita.

Sob aqueles sobrados sujos vi os arcanos com flor!


V

Escrever nem uma coisa Nem outra -

A fim de dizer todas

Ou, pelo menos, nenhumas.

Assim,

Ao poeta faz bem

Desexplicar -

Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.


VI

No que o homem se torne coisal,

corrompem-se nele os veios comuns do entendimento.

Um subtexto se aloja.

Instala-se uma agramaticalidade quase insana,

que empoema o sentido das palavras.

Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas

Coisa tão velha como andar a pé

Esses vareios do dizer.


VII

O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.

Há que se dar um gosto incasto aos termos.

Haver com eles um relacionamento voluptuoso.

Talvez corrompê-los até a quimera.

Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.

Não existir mais rei nem regências.

Uma certa luxúria com a liberdade convém.


VII

Nas Metamorfoses, em 240 fábulas,

Ovídio mostra seres humanos transformados

em pedras vegetais bichos coisas

Um novo estágio seria que os entes já transformados

falassem um dialeto coisal, larval,

pedral, etc.

Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural -Que os poetas aprenderiam

- desde que voltassem às crianças que foram

As rãs que foram

As pedras que foram.

Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar

a língua.

Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma nos mosquitos?

Seria uma demência peregrina.


IX

Eu sou o medo da lucidez

Choveu na palavra onde eu estava.

Eu via a natureza como quem a veste.

Eu me fechava com espumas.

Formigas vesúvias dormiam por baixo de trampas.

Peguei umas ideias com as mãos - como a peixes.

Nem era muito que eu me arrumasse por versos.

Aquele arame do horizonte

Que separava o morro do céu estava rubro.

Um rengo estacionou entre duas frases.

Uma descor

Quase uma ilação do branco.

Tinha um palor atormentado a hora.

O pato dejetava liquidamente ali.

domingo, fevereiro 05, 2006

Livro Sobre Nada - frases

Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.

Tudo que não invento é falso.

Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.

Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.

É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.

Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas se não desejo contar nada, faço poesia.

Melhor jeito que achei para me conhecer foi fazendo o contrário.

A inércia é o meu ato principal.

Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.

O artista é um erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.

A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.

Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.

Por pudor sou impuro.

Não preciso do fim para chegar.

De tudo haveria de ficar para nós um sentimento longínquo de coisa esquecida na terra
— Como um lápis numa península.

Do lugar onde estou já fui embora.