Matéria
O osso da ostra
A noite da ostra
Eis um material de poesia
Em Matéria de poesia (2001, pág. 51)
Manoel Wenceslau Leite de Barros nasceu em Cuiabá (MT) no dia 19 de dezembro de 1916 e faleceu em 13 de novembro de 2014. Foi advogado, fazendeiro e poeta. O nome do blog é em homenagem ao primeiro livro publicado pelo poeta, em 1937.
Há um cio vegetal na voz do artista.
Ele vai ter que envesgar seu idioma ao ponto de alcançar o murmúrio
das águas nas folhas das árvores.
Não terá mais o condão de refletir sobre as coisas.
Mas terá o condão de sê-las.
Não terá mais ideias: terá chuvas, tardes, ventos, passarinhos…
Nos restos de comida onde as moscas governam ele achará solidão.
Será arrancado de dentro dele pelas palavras a torquês.
Sairá entorpecido de haver-se.
Sairá entorpecido e escuro.
Ver sambixuga entorpecida gorda pregada na barriga do cavalo —
Vai o menino e fura de canivete a sambixuga: Escorre sangue escuro do cavalo.
Palavra de um artista tem que escorrer substantivo escuro dele.
Tem que chegar enferma de suas dores, de seus limites, de suas derrotas.
Ele terá que envesgar seu idioma ao ponto de enxergar no olho de uma
garça os perfumes do sol.
Em “Retrato do artista quando coisa” (1998)
Imagem: Iluminura da filha do poeta, Martha Barros.
Martha Barros, a filha de Manoel de Barros, conta como era a rotina do poeta, desde antes de casar.
Também lê alguns poemas.
Minha mãe me deu um rio.
Era dia de meu aniversário e ela não sabia o que me presentear.
Fazia tempo que os mascates não passavam naquele lugar esquecido.
Se o mascate passasse a minha mãe compraria rapadura
Ou bolachinhas para me dar.
Mas como não passara o mascate, minha mãe me deu um rio.
Era o mesmo rio que passava atrás de casa.
Eu estimei o presente mais do que fosse uma rapadura do mascate.
Meu irmão ficou magoado porque ele gostava do rio igual aos outros.
A mãe prometeu que no aniversário do meu irmão
Ela iria dar uma árvore para ele.
Uma que fosse coberta de pássaros.
Eu bem ouvi a promessa que a mãe fizera ao meu irmão
E achei legal.
Os pássaros ficavam durante o dia nas margens do meu rio
E de noite eles iriam dormir na árvore do meu irmão.
Meu irmão me provocava assim: a minha árvore deu flores lindas em setembro.
E o seu rio não dá flores!
Eu respondia que a árvore dele não dava piraputanga.
Era verdade, mas o que nos unia demais eram os banhos nus no rio entre pássaros.
Nesse ponto nossa vida era um afago!
“Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens”
Quem anda no trilho é trem de ferro.
Sou água que corre entre pedras:
- liberdade caça jeito.
Procuro com meus rios os passarinhos
Eu falo desemendado.
Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu
destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.
Gorjeio é mais bonito do que canto porque nele se
inclui a sedução.
É quando a pássara está namorada que ela gorjeia.
Ela se enfeita e bota novos meneios na voz.
Seria como perfumar-se a moça para ver o namorado.
É por isso que as árvores ficam loucas se estão gorjeadas.
É por isso que as árvores deliram.
Sob o efeito da sedução da pássara as árvores deliram.
E se orgulham de terem sido escolhidas para o concerto.
As flores dessas árvores depois nascerão mais perfumadas.
* [Ensaios Fotográficos]
** Comemora-se o Dia da Árvore em 21/09, em todo o território nacional; a data foi escolhida por estar próxima ao início da primavera.
Abro os olhos.
Não vejo mais meu pai.
Não ouço mais a voz de meu pai.
Estou só. Estou simples.
Não como essa poderosa voz da terra
com que me estás chamando, pai —
porque as cores se misturam
em teu filho ainda
e a nudez e o despojamento
não se fizeram em seu canto;
mas, simples por só acreditar
que com meus passos incertos
eu governo a manhã
feito os bandos de andorinha
nas frondes do ingazeiro.
Fomos rever o poste.
O mesmo poste de quando a gente brincava de
pique e de esconder.
Agora ele estava tão verdinho!
O corpo recoberto de limo e borboletas.
Eu quis filmar o abandono do poste.
O seu estar parado.
O seu não ter voz.
O seu não ter sequer mãos para se pronunciar
com as mãos.
Penso que a natureza o adotara em árvore.
Porque eu bem cheguei de ouvir arrulos de
passarinhos
que um dia teriam cantado entre as suas
folhas.
Tentei transcrever para flauta a ternura dos
arrulos.
Mas o mato era mudo.
Agora o poste se inclina para o chão como
alguém
que procurasse o chão para repouso.
Tivemos saudades de nós.
(Em Poemas rupestres)
V
Eles enverdam jia nas auroras.
São viventes de ermo. Sujeitos
Que magnificam moscas — e que oram
Devante uma procissão de formigas…
São vezeiros de brenhas e gravanhas.
São donos de nadifúndios.
(Nadifúndio é lugar em que nadas
Lugar em que osso de ovo
E em que latas com vermes emprenhados na boca.
Porém.
O nada destes nadifúndios não alude ao infinito menor
de ninguém.
Nem ao Néant de Sartre.
E nem mesmo ao que dizem os dicionários: coisa que
não existe.
O nada destes nadifúndios existe e se escreve com letra
minúscula.)
Se trata de um trastal.
Aqui pardais descascam larvas.
Vê-se um relógio com o tempo enferrujado dentro.
E uma concha com olho de osso que chora.
Aqui, o luar desova…
Insetos umedecem couros
E sapos batem palmas compridas…
Aqui, as palavras se esgarçam de lodo.
* Em: O Guardador de águas.
(Em Livro de pré-coisas, Poesia completa, Editora Leya, página 221)
* Rosa do meu jardim.